Telma P. Vinha
Faculdade de Educação – UNICAMP
Faculdade de Educação – UNICAMP
Inúmeros estudos indicam que as escolas influenciam de modo significativo a formação moral de crianças e jovens. Não devemos minimizar a influência da família, mas precisamos modificar a crença reducionista e cômoda de que a escola é impotente diante dela. A moralidade, como vimos anteriormente, desenvolve-se em estreita relação com o meio, dependendo da qualidade das relações sociais. Ora, se a criança e o jovem passam grande parte de sua vida interagindo dentro de uma instituição de ensino, desenvolvendo relações baseadas em normas, comportamentos e em conceitos ali estabelecidos, como ignorar a influência do ambiente escolar neste processo? Consciente ou não, a escola sempre atuará no desenvolvimento da moralidade de seus alunos. Contudo, ainda são poucas as que os conduzem em direção à autonomia.
Piaget considera que a autonomia não se desenvolve em uma atmosfera de autoridade, opressão intelectual e moral. Também não se dá por discursos, sermões, sanções, normas ou atividades estéreis. Ao contrário, para que ela ocorra, são fundamentais as vivências em situações de cooperação, liberdade de pesquisa, respeito mútuo e também a experiência de vida. É a partir dessas trocas que a criança desenvolve sua personalidade, percebendo aos poucos que as pessoas têm diferentes necessidades e maneiras de pensar e agir.
Nenhuma escola quer formar alunos acríticos, obedientes, submissos ou heterônomos. Todavia, no cotidiano das famílias e das escolas, os adultos utilizam procedimentos que levam as crianças e jovens a se submeterem às normas porque uma autoridade que sabe o que é “melhor para elas” assim o quer. Esses caminhos levam mais à obediência do que à autonomia.
Assim, encontramos comumente nas escolas a imposição de regras tolas e desnecessárias (“não usar modismos, não conversar sem a autorização do professor”), normas que não se flexibilizam (“não posso deixar você entrar sem uniforme, mesmo sabendo que caiu achocolatado na sua camiseta e você estava na casa de seu pai, onde não há outra camiseta para você trocar”), ou normas embasadas na mera obediência da autoridade (“não pode usar boné porque é regra da escola”). Para que tais normas sejam cumpridas, são empregados procedimentos exteriores (recompensa, censuras, ameaças, vigilância ou punição), reforçando a submissão e a obediência acrítica. Esses procedimentos dificultam a compreensão do motivo das regras, podendo em longo prazo apresentar efeitos indesejados, pois dificultam que o jovem construa suas próprias razões internas para seguir as regras morais. Para haver legitimação, é importante que o educar faça o cumprimento das normas corresponder a uma sensação de bem-estar, de satisfação interna, de orgulho ao respeitá-las, e também que promova a reflexão sobre as possíveis consequências do não cumprimento das mesmas.
Sob a perspectiva da autonomia, os conflitos são necessários ao desenvolvimento da criança e do jovem, devendo ser encarados como ricas oportunidade de se trabalhar valores e regras. Assim, o educador não prioriza a solução do conflito em si, mas o processo de resolução e a forma com que os envolvidos enfrentam o problema (o que se aprende com o ocorrido). Os educadores que dominam esta concepção compreendem o conflito e sua solução como partes importantes do currículo, assim como outros conteúdos que precisam ser trabalhados. E, ao invés de gastarem tempo e energia tentando preveni-los, aproveitam-nos para auxiliar os alunos a conhecerem seus próprios pontos de vista, os pontos de vista dos outros e a buscarem soluções aceitáveis, respeitosas e cooperativas.
Construir na instituição educativa um ambiente favorável ao desenvolvimento de personalidades autônomas é algo complexo, ainda pouco compreendido, mas necessário se de fato queremos formar cidadãos éticos. É necessário ainda o entendimento que a ética deverá estar presente nas mais diversas dimensões da escola, tais como na relação da equipe, no trabalho docente, na postura, nos juízos emitidos, na qualidade das relações, nas intervenções da indisciplina, do bullying, na maneira como o conhecimento é transmitido, trabalhado e avaliado, nas relações com a comunidade… Passa a ser o eixo central que estrutura todas as atividades e relações.
Para que haja tomada de consciência é preciso também que haja reflexão. Para isso, a moral também deve ser apresentada como objeto de estudo multidisciplinar, abrindo oportunidade de se pensar e debater sobre o tema, podendo-se utilizar como recursos: filmes, textos, teatros, murais e trabalhos artísticos. É preciso também oferecer propostas de atividades sistematizadas que trabalhem os procedimentos morais, tais como assembleias, discussão de dilemas, debates etc. Assim, possibilita-se a apropriação racional de normas e valores, o autoconhecimento, a reflexão do motivo de se agir de acordo com regras justas e necessárias, a aprendizagem de formas mais assertivas e eficazes de se resolver conflitos e, consequentemente, o desenvolvimento da autonomia.
Considerando que a moral traz auto-restrições à liberdade, uma pessoa só aceitará tais restrições se fizerem sentido para ela, se lhe trouxerem o sentimento de auto-respeito, de dignidade ou de honra. Uma educação que visa efetivamente ao desenvolvimento da autonomia, e não à simples obediência conformista às regras impostas, não pode ser reduzida à transmissão de valores por meio de discursos, à imposição de normas e sanções ou a atividades estéreis.
A conquista de relações equilibradas e respeitosas, o que não significa que os conflitos estarão ausentes, não é decorrente de um simples processo de amadurecimento ou de se aguardar passivamente a mudança da sociedade como pré-requisito para tanto. Essa conquista depende de todo um processo de construção e aprendizagem, visto que a criança ou o jovem não irão aprender sozinhos questões tão complexas se não foram previstas boas intervenções e oferecidas situações que contribuam para essa aprendizagem.
Em vez de investirmos nossos esforços na antecipação, contenção e obtenção de um “bom comportamento” do aluno (muitas vezes por medo ou conformismo), deveríamos dirigir nossos olhares para o desenvolvimento e para a aprendizagem da autonomia. Nessa perspectiva, a ética é considerada “vacina e não remédio”, necessitando para tanto de uma contínua vivência da cidadania em um ambiente sociomoral cooperativo.
Telma Vinha é pedagoga, doutora em Educação e professora da Faculdade de Educação da Unicamp. Pesquisadora na área de relações interpessoais e desenvolvimento moral, é autora de O educador e a moralidade infantil e de Quando a escola é democrática: um olhar sobre a prática das regras e assembleias na escola.
[1] Um ambiente sociomoral é toda a rede de relações interpessoais que forma a experiência escolar do aluno, incluindo o relacionamento com o professor, com os colegas, com os estudos e com as regras.
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